Você realmente deseja extrair o máximo do ECG? Então veja isso!

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Quem investe em renda variável sabe que existem duas correntes principais quando o assunto é análise de compra e venda de ações: a fundamentalista e a técnica (ou gráfica).

Para quem não está habituado, rapidamente é possível dizer que a análise fundamentalista procura avaliar elementos e indicadores da saúde da empresa que são apresentados em relatórios contábeis e de demonstração de resultados. Já a análise técnica, é feita por meio da interpretação de sinais no gráfico de variação do preço da ação que auxiliam na tomada de decisão compra ou venda.

Apesar de alguns de seus defensores mais fervorosos considerarem que essas formas de avaliação são autossuficientes – bastam quando interpretadas isoladamente -, é justamente a junção das duas é que faz “dar bom” na hora de investir: uma consegue nortear a decisão de qual ativo comprar ou vender e a outra a melhor hora de entrar ou sair de uma operação financeira.

 

Figura 1: Análise gráfica para compra e venda de ações.

 

E por que eu estou falando tudo isso? Por que faz todo sentido considerar a interpretação do ECG como a análise gráfica (ou técnica) dentro do contexto dos investimentos. Com o traçado, é possível descrever e até interpretar os achados obtidos pelo registro da atividade elétrica do coração, mas para saber como isso vai auxiliar no diagnóstico e no tratamento do paciente, é preciso contextualizar com dados clínicos (ou “fundamentalistas”) para que a decisão do plano diagnóstico terapêutico seja o mais assertivo possível.

Então, se você quer entender um pouco mais sobre como extrair o máximo do ECG do seu paciente, você está no lugar certo.

 

Descrevendo o ECG sem deixar passar nada

 

Se você está acompanhando a gente aqui no blog, já leu o artigo sobre qual a melhor maneira de interpretar um ECG no PS sem deixar passar nada. Lá, a gente conversou sobre a importância de se ter uma sistemática na hora de avaliar o traçado que comece pelos aspectos relacionados à identificação do paciente e às características técnicas do registro do traçado. Caso você ainda não tenha lido esse conteúdo, recomendo fortemente que aproveite o link ali em cima e dê uma conferida.

Na etapa de análise propriamente dita do traçado, foram referidas as cinco principais etapas envolvidas na interpretação do traçado: o ritmo, a ativação atrial, a condução atrioventricular, a ativação ventricular e a repolarização ventricular.

Mas será que você saberia me dizer que aspectos de fato estamos avaliando em cada uma dessas etapas? Onde entra a análise do eixo cardíaco? E de possíveis alterações relacionadas ao infarto agudo do miocárdio? Ou ainda, em quais dessas etapas devo me atentar a descrever alterações relacionadas à presença ou não de marca-passo?

Pois é, com o tempo e experiência, todas essas dúvidas deixam de existir. Mas enquanto isso não ocorre, existe uma forma fácil de guardar um roteiro para descrição e interpretação do traçado que vai te ajudar muito enquanto essa bagagem não vem.

 

O acrônimo FRABESBI³

 

“Acrônimo? Mas o que é isso?”

É uma palavra formada pela inicial ou mais de uma letra de cada um dos segmentos sucessivos de uma locução, ou pela maioria dessas partes.

É o que a gente vê com frequência, por exemplo em nomes de estudos científicos recentes, que pegam trechos de cada palavra do título para formar uma nova palavra que possa identificar o paper de forma mais rápida.

Dentro do nosso contexto, vamos utilizá-lo para nos lembrar dos principais elementos que temos que procurar ativamente no traçado de forma sistemática, a fim de garantir que os principais elementos do traçado foram avaliados.

 

Tabela 1: A composição do acrônimo FRABESBI³

 

1)    Frequência

 

A primeira etapa da avaliação ECG é verificar a frequência cardíaca do traçado. Isso vai ter nortear a já denominar corretamente o ritmo cardíaco na etapa seguinte e te ajudar a não esquecer de documentar corretamente uma taquicardia sinusal, em vez de simplesmente ritmo sinusal para um traçado normal com mais de 100 bpm.

Para fazer a correta avaliação da FC, detalhamos tudo no artigo 4 métodos eficazes para estimativa rápida da frequência cardíaca.

 

2)    Ritmo de base e ectopias

 

Nesta etapa, vamos descrever o ritmo de base do traçado, iniciando pela análise da regularidade ou irregularidade dos batimentos.

Em geral, o ritmo sinusal é o mais comum e se apresenta de forma regular – ou seja, com intervalos entre os batimentos constantes ou com discreta variação – e com uma onda P positiva em DI, DII e avF e precedendo cada QRS. Outros ritmos regulares incluem o ectópico atrial, o juncional, algumas taquicardias paroxísticas supraventriculares – como a por reentrada nodal, a “taquissupra” mais comum no PS – e mesmo taquicardias ventriculares.

 

Figura 2: Ritmo sinusal alternando com ritmo de fibrilação atrial. A análise do ritmo é a segunda etapa na interpretação dos achados do traçado.

 

Já os ritmos irregulares são aqueles em que o intervalo RR é variável a cada batimento. Sem dúvida, o principal representante desse tipo de ritmo é a fibrilação atrial, que também apresenta como elemento para o diagnóstico a ausência da onda P e, eventualmente, a percepção de ondas f (minúscula) que indicam a ativação caótica dos átrios nesta arritmia. Outros ritmos irregulares que podemos encontrar são o flutter atrial, as taquicardias atriais com condução AV variável e eventualmente alguns tipos de taquicardias ventriculares.

Ah, já deu pra perceber que outra importante etapa aqui é entender se o ritmo que estamos observando é de fato supraventricular ou ventricular. É nesta etapa, por exemplo, que precisamos distinguir se uma taquicardia regular de QRS largos se trata de uma taquicardia supraventricular com aberrância de condução ou mesmo de uma taquicardia ventricular. Portanto, logo no início da análise, será possível perceber se já estamos diante de um paciente com risco iminente.

Dica importante: no contexto de PS, cerca de 80% das taquiarritmias de QRS largo correspondem a taquicardia ventricular (TV). Fique ligado!

Além do ritmo de base, é preciso identificar eventuais ectopias ou arritmias transitórias, manifestada pela presença de um ou mais batimentos que tem origem fora do marca-passo natural que está comandando o coração.

As ectopias são classificadas comumente como extrassístoles (precoces) ou escapes (tardios) – não se preocupe, em breve, vamos abordar esse tema por aqui – e podem ser isoladas, em pares ou em salvas de 3 ou mais batimentos.  Também é possível identificar se são supraventriculares ou ventriculares, dependendo da morfologia do complexo QRS.

 

3)    Ativação atrial

 

Já deu pra perceber que, apesar de se tratar de um item do acrônimo, toda a análise e descrição da ativação atrial começa no item anterior. Isso porque suas características ajudam a determinar o ritmo do traçado.

Mas, então, por que colocar um item à parte para descrevermos o átrio? Bom, aqui nesta etapa, é possível determinar elementos complementares que vão ajudar a qualificar ainda melhor o ritmo, como por exemplo, o local de origem de um ritmo ectópico atrial, o tipo de flutter atrial (típico ou atípico), se existe ou não uma P retrógrada no ritmo juncional, entre outros.

Também, vamos avaliar as características dessa onda, se possível, referentes aos sinais de sobrecarga atrial esquerda e/ou direita, olhando principalmente as derivações DII e V1. E por fim, avaliar se existe algum distúrbio de condução interatrial que possa indicar o comprometimento do fascículo de Bachmann.

 

Figura 3: A avaliação do átrio ocorre principalmente observando a onda P nas derivações DII e V1.

 

 

4)    Bloqueios AV e pré-excitação ventricular

 

Nesta etapa, também é válido dizer que alguma dica sobre a condução atrioventricular pode ter sido capturada durante a avaliação do ritmo, já que a maior parte das bradiarritmias são secundárias a distúrbios da condução atrioventricular.

Aqui, será preciso identificar a duração do intervalo PR, se a onda P estiver presente. Dependendo do distúrbio de condução atrioventricular presente, o intervalo PR pode ser variável ou uma ou mais ondas P podem não gerar complexos QRS no traçado. Vale lembrar que nesta etapa pode ser dado o diagnóstico de bloqueios atrioventriculares avançados que também são situações de risco iminente para o paciente, como nos casos de bloqueio atrioventricular de terceiro grau ou BAVT.

 

Figura 4: Exemplo de bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz I (Fenômeno de Wenckebach). Observe o aumento progressivo do intervalo PR.

 

Outro dado importante que pode ser minerado nesta etapa é a ocorrência de intervalo PR curto associado ou não a pré-excitação ventricular. Veja, nem todo PR curto é de fato uma pré-excitação, mas comumente temos essa associação no traçado. A definição de PR curto é quando este intervalo apresenta duração menor do que 0,12 s ou 120 ms. Já a pré-excitação mais comum, a Wolf-Parkinson-Whitte geralmente cursa com a presença de um entalhe inicial no complexo QRS, denominado onda delta, que traduz o início da ativação ventricular pela via acessória.

 

5)    Eixo cardíaco

 

A avaliação do eixo costuma ser uma das primeiras etapas para quem tá começando a aprender ECG. E, na verdade, é tida com uma das mais complicadas em relação à compreensão e, no contexto de um PS, por exemplo, pode não agregar tanto assim para ser colocado como item número um na análise.

Ah, isso quer dizer que não vale a pena avaliar o eixo? Bem, não foi isso que eu quiz dizer.

Na verdade, a análise do eixo vai te ajudar a contextualizar outros achados importantes no traçado. Um exemplo seria o diagnóstico de desvio acentuado do eixo cardíaco para a esquerda, o que poderia denotar uma sobrecarga ventricular esquerda ou bloqueio divisional anterossuperior. Ou desvio do eixo para a direita, que pode indicar sobrecarga ventricular direita secundária, por exemplo, à doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) ou aumento súbito de pressão de câmaras cardíacas direitas, como no tromboembolismo pulmonar (TEP).

Para fazermos a análise do eixo cardíaco, é preciso dominar o uso do sistema hexa-axila ou “rosa dos ventos” do eletrocardiograma.

 

6)    Sobrecargas ventriculares

 

Nesta etapa, vamos avaliar todos os aspectos relacionados ao diagnóstico de sobrecargas ventriculares. Isso ganhou um destaque no acrônimo porque temos diversas formas de avaliar as sobrecargas e isso pode requerer uma atenção especial.

Por exemplo, são comumente utilizados para o diagnóstico de sobrecarga ventricular esquerda (SVE) os critérios de Sokolow-Lyon, Cornell, Gubner, análise da derivação aVL, entre outras. Já para avaliação da sobrecarga ventricular direita, temos uma série de achados também, principalmente vistos nas derivações direitas do ECG (V1 a V3) e que devem ser correlacionados com achados relacionados à sobrecarga atrial direita e desvios do eixo.

 

Figura 5: ECG evidenciando sinais de sobrecarga ventricular esquerda, com aumento de amplitude das ondas R e repolarização ventricular com padrão strain.

 

Aliás, nesta etapa, você tem a chance de reavaliar os átrios para ter certeza de que não deixou passar algum diagnóstico relacionado à sobrecarga dessas câmaras – e isso pode te ajudar a dar diagnóstico de SVE ou SVD em alguns contextos.

E ainda há sinais descritos para indicar a presença de sobrecarga biatrial, como o sinal de Katz-Wachtel, que está presente quando encontramos complexos QRS isodifásicos com ondas amplas em derivações precordiais centrais (V2 a V4).

 

7)    Bloqueios de ramos e divisionais

 

Uma das últimas etapas na descrição e interpretação do ECG é a avaliação da presença de bloqueios de ramo, direito ou esquerdo, e/ou de seus divisionais, como o bloqueio divisional antero-superior ou póstero-inferior.

Apesar disso, por ser algo que facilmente é visto num traçado, os largos acabam sendo, equivocadamente, um dos primeiros itens avaliados.

Sim, é verdade que a avaliação do QRS pode fazer parte do ritmo para a definição entre um “taquissupra” aberrante ou TV, como já dissemos, mas essa etapa não pode ser capaz de chamar a atenção de quem está interpretando a ponto de fazê-lo esquecer de todas as etapas anteriores que já descrevemos. Em outras palavras, não pule etapas para avaliar o tipo de bloqueio de ramo.

E sabe porque? Porque pode ser que a causa do alargamento do QRS seja uma pré-excitação e não um distúrbio das vias de condução do sistema His-purkinje. E se você avaliar o intervalo PR antes, pode obter uma dica valiosa que vai te ajudar a entender essa morfologia bizarra e a alteração da duração do QRS.

Mas voltando à definição, o bloqueio de ramo ocorre quando a duração do complexo QRS é maior ou igual a 120 ms e classificado quanto ao ramo acometido, o direito ou esquerdo. Já os bloqueios divisionais, são descritos com QRS com duração menor que 120 ms (quando isoladamente) e cada um deles tem alterações específicas nas ondas que compõem os complexos QRS.

Vale lembrar que é possível a associação de bloqueios de ramos esquerdo ou direito com bloqueios divisionais. E também, vale dizer que alterações na morfologia dos complexos QRS podem indicar distúrbios da condução pelos ramos sem que necessariamente a duração do QRS seja maior ou igual a 120 ms  – antigamente, esses distúrbios eram denominados hemi-bloqueios.

 

Figura 6: Bloqueio de ramo esquerdo. A definição de bloqueio de ramo envolve a ocorrência de complexos QRS com duração igual ou maior a 120ms e com morfologia indicando acometimento do ramo esquerdo ou direito.

 

8)    Infarto, isquemia e intervalo QT

 

Nesta última, porém não menos importante etapa da avaliação do ECG, vamos descrever e interpretar aspectos relacionados ainda à ativação ventricular e avaliar as alterações possíveis da repolarização ventricular que possam indicar a presença de patologias.

 

Infarto

 

A avaliação de infarto requer atenção especial. Na verdade, quando falamos infarto do miocárdio podemos estar nos referindo ao infarto agudo (ou IAM), em que estamos diante de uma emergência e ações imediatas são necessárias, ou podemos estar diante de um infarto antigo, na grande maioria das vezes num paciente que se apresenta de forma assintomática.

O diagnóstico de infarto antigo ou necrose miocárdica é feito por meio da avaliação dos complexos QRS na busca de ondas Q patológicas. Elas necessariamente aparecerão em derivações contíguas que compõem as chamadas paredes ou áreas do coração. Por exemplo, se encontramos ondas Q patológicas das derivações DII, DIII e aVF, podemos dizer que temos uma área de necrose ou infarto em parede inferior.

Existem outros achados que podem estar relacionados à presença de infarto prévio, como baixa progressão da onda R no plano horizontal, sugerindo área eletricamente inativa anterior, ou mesmo sinais específicos, como o de Cabrera, que aparece nos casos de pacientes portadores de bloqueio de ramo esquerdo.

Já o diagnóstico eletrocardiográfico de infarto agudo do miocárdio é realizado por meio da avaliação de supradesnivelamentos do segmento ST também em derivações contíguas, indicando uma insuficiência coronariana (ou dificuldade de entrega de sangue ao músculo cardíaco) que acomete a parede do miocárdio de forma transmural, ou seja, desde o epicárdio até o endocárdio.

 

Figura 7: IAM de parede anterosseptal: elevação do segmento ST de V1 a V3.

 

Em casos em que há distúrbios de condução como o bloqueio de ramo esquerdo ou mesmo a presença de marca-passo ventricular, os critérios de Sgarbossa e o modificado podem auxiliar no diagnóstico de síndrome coronariana aguda com supra de ST.

 

Isquemia

 

Mas, nem sempre, a síndrome coronariana se apresenta com supradesnivelamento do segmento ST. Quando a insuficiência do aporte sanguíneo ao miocárdio acomete somente o epicárdio, podemos ter manifestações isoladas relacionadas ao infradesnivelamento do segmento ST e alterações da onda T, com a inversão de sua polaridade. Essas alterações podem se apresentar de forma dinâmica e o traçado pode apresentar normalização desses aspectos após o início do tratamento clínico, por exemplo, após a terapia antianginosa.

Vale lembrar que essas alterações não descrevem paredes ou regiões específicas do miocárdio. Em outras palavras, se temos infradesnivelamento do segmento ST de V2 a V4 num paciente com queixa de dor típica, não é possível afirmar que a região acometida é a anterior, apesar de ser possível afirmar que se trata de uma Síndrome Coronariana Aguda sem supra de ST de alto risco, que pode estar relacionada ao diagnóstico de Angina instável ou infarto agudo do miocárdio. Só vamos descobrir a(s) artéria(s) acometida(s) durante o exame angiográfico – que neste caso deve ser feito em até 48h.

 

Intervalo QT

 

O último item da análise do traçado é o cálculo do intervalo QT. E, certamente, é uma das análises mais “esquecidas” no ECG. Pouca gente se atenta para a necessidade de se medir esse intervalo e menos pessoas ainda sabem de fato a técnica correta para que a medida seja feita de forma acurada.

O fato é que nos últimos meses, por conta da pandemia da COVID-19 e as potenciais apostas de tratamento medicamentoso para a doença, muito se falou das possíveis repercussões e efeitos colaterais envolvendo o aumento do intervalo QT.

Isso acabou despertando o interesse sobre o tema e a gente escreveu um artigo completo sobre como avaliar pacientes com QT longo.

Aqui, vale a pena comentar que as alterações do intervalo QT podem ser tanto aumento quanto diminuição de sua duração e que isso se repercute em potencial risco de desenvolvimento de arritmias malignas. As principais causas de alterações do intervalo QT incluem causas hereditárias, uso de medicamentos e distúrbios eletrolíticos.

 

Interpretando as alterações do ECG

 

Se você acompanhou a leitura até com bastante atenção percebeu que durante a descrição das alterações eletrocardiográficas naturalmente vão surgindo as hipóteses diagnósticas.

É praticamente impossível dissociar as duas coisas, principalmente quando você vai ganhando experiência no atendimento a pacientes cardiológicos.

Mas é claro que no começo, a gente acaba se atendo mais aos achados do traçado e às vezes até se perde com artefatos ou variações da normalidade que não impactam de fato no plano diagnóstico terapêutico.

É por isso que, nesta etapa, você sempre deve tentar procurar dados da história clínica que possam te ajudar a corroborar os achados do traçado. Quer ver só como isso pode acontecer?

 

Infarto oculto

 

Certa vez, atendi na sala de emergência um paciente colega médico que chegou deambulando e se queixando de palpitações taquicárdicas. De fato, sua FC à palpação do pulso se mostrava elevada e logo deitei o paciente na maca.

Enquanto ele era monitorizado, ele revelou que as palpitações haviam se iniciado na manhã daquele dia – iniciei o atendimento por volta das 16h! – e que ele havia permanecido dessa forma até o momento. Negava dor torácica, sinais de baixo débito ou qualquer outra queixa.

Realizado o ECG, foi identificada uma taquicardia supraventricular paroxística e realizada a infusão de adenosina para reversão, realizada com sucesso. Até aí, tudo bem.

A minha maior surpresa foi quando solicitei o ECG de controle pós-reversão do ritmo para ritmo sinusal e encontrei no traçado uma área eletricamente inativa extensa em parede anterior, antes não vista de forma clara por causa da arritmia.

 

Figura 8: Sempre faça o ECG de controle após a reversão de uma taquicardia supraventricular paroxística.

 

Nesse momento, fui obrigado a revisitar a história do paciente e interrogar ativamente a ocorrência de qualquer sintoma que pudesse justificar a possibilidade de um infarto prévio.

Inicialmente ele negou qualquer sintoma de dor torácica, mas insisti e ele recuperou da memória um episódio de dor torácica que ele denominou de costocondrite (uma inflamação da cartilagem que conecta a costela ao osso esterno) que ocorreu justamente após um esforço físico (jogo de tênis) e que ele mesmo “tratou” com infusão de um anestésico local.

Na hora, diagnostiquei aquele evento como IAM prévio recente, associando a história aos achados descritos no ECG de repouso em ritmo sinusal. Ou seja, a interpretação do achado foi feita adicionando o elemento clínico e orientando melhor a próxima tomada de decisão.

Imagine se eu não tivesse insistido em questionar sobre a história clínica. Imagine deixar passar um diagnóstico tão importante.

O paciente foi admitido, submetido a ecocardiograma que mostrou insuficiência ventricular esquerda secundária a acinesia importante da parede livre do ventrículo esquerdo. Felizmente, foi submetido a revascularização após pesquisa de viabilidade miocárdica e acabou evoluindo bem.

 

Variantes da normalidade

 

Outro item importante que deve ser levado em conta é que eventuais alterações eletrocardiográficas podem ou não indicar patologia cardíaca estrutural. Tudo depende do contexto clínico em que aquele traçado se insere.

Veja algumas das principais alterações eletrocardiográficas que podem estar presentes e que são aceitas como variações do ECG normal adulto:

 

Ritmo

  • Arritmia sinusal intensa, com batimentos de escape.
  • Perda da arritmia sinusal (normal com o avançar da idade).
  • Extrassístoles supraventriculares e ventriculares.

Onda P

  • Normalmente invertida em aVR.
  • Pode ser invertida em aVL.

Eixo cardíaco

  • Desvio discreto para a direita em pessoas altas.
  • Desvio discreto para a esquerda em pessoas obesas e grávidas.

Complexos QRS

  • Dominância discreta da onda R em V1, dado que não há outra evidência de sobrecarga ventricular esquerda ou infarto posterior
  • A onda R nas derivações precordiais laterais pode ser maior do que 25mm em indivíduos jovens ativos e magros.
  • Bloqueio incompleto do ramo direito (padrão RSR’ , com complexos inferiores a 120ms de duração).
  • Ondas Q septais nas derivações DIII, aVL, V5 e V6.

Segmento ST

  • Elevado nas derivações anteriores após a onda S (segmento ST tipo ascendente).
  • Depressão na gravidez.
  • Depressão inespecífica ascendente.

Onda T

  • Invertida em aVR e frequentemente em V1.
  • Invertida nas derivações V2 e V3 ou mesmo em V4 em negros.
  • Pode inverter-se com a hiperventilação.
  • Apiculada, especialmente se as ondas T são altas.

Onda U

  • Normal nas derivações precordiais anteriores quando a onda T não está achatada.

Como saber como contextualizar esses achados? Calma, isso daí faz parte da tal bagagem que é necessária ser adquirida por meio da análise de diversos e diversos traçados. Isso vem com o tempo mesmo. Não desista e siga em frente no seu aprendizado.

 

Como o ECG pode auxiliar no diagnóstico clínico?

 

O ECG é um exame complementar que ajuda na confirmação diagnóstica de diversas situações clínicas. No item anterior, eu citei um episódio bem claro de como isso pode ocorrer.

Por vezes, o paciente vai se apresentar com queixas e alterações no PS que podem ser corretamente diagnosticadas e tratadas. Mas a investigação do porquê pode fazer toda a diferença na evolução clínica do paciente.

É o caso, por exemplo, de um paciente com queixas de palpitações taquicárdicas e que apresenta ECG com diagnóstico de fibrilação atrial. Se fizermos corretamente o tratamento de um a FA aguda, revertendo o ritmo para sinusal, caso não haja contraindicações, em tese, o paciente estará tratado em relação àquele episódio.

Mas, na verdade, esse achado eletrocardiográfico tem que motivar a pesquisa eventuais doenças relacionadas à fibrilação atrial. Nesse contexto, você pode acabar fazendo o diagnóstico de um hipo ou hipertireoidismo, ou mesmo encontrar uma insuficiência cardíaca, infarto ou valvopatias não identificadas.

O mesmo vale para alterações eletrocardiográficas que podem levar ao diagnóstico de alterações hidroeletrolíticas, como hipercalcemia secundária a um processo neoplásico. Você já imaginou chegar a um diagnóstico de câncer observando alterações no ECG? Agora faz sentido, não é mesmo?

A mensagem aqui é: não subestime o poder diagnóstico do ECG. Sempre se pergunte porque o paciente está apresentando eventuais alterações e proceda com a correta investigação diagnóstica no ambiente mais adequado (internação ou ambulatorial).

 

O ECG também pode nortear o tratamento clínico?

A última etapa no processo de extrair o máximo de informações do ECG do nosso paciente é entender como os achados podem nortear o tratamento do paciente, seja no curto prazo, seja no longo prazo.

Um exemplo bem importante na prática clínica de qualquer médico plantonista de PS é saber identificar a artéria culpada para lesão aguda do miocárdio durante um infarto. Quando você identifica, por exemplo, que o supra de ST está presente nas derivações DII, DIII e aVF, você está delimitando um território que é a parede inferior do ventrículo esquerdo e também levantando suspeitas de acometimento de infarto de ventrículo direito (VD), que poderia ser confirmado pela presença de alterações nas derivações direitas V3R e V4R.

 

Figura 9: IAM de parede inferior. Considerar infarto de VD e providenciar ECG com derivações direitas V3R e V4R.

 

Confirmado que o ventrículo direito foi acometido, você precisará direcionar o seu tratamento para as possíveis repercussões previstas nos casos de infarto de VD. Ou seja, essa informação, extraída do ECG, vai te permitir considerar a reposição volêmica como parte inicial do atendimento para manter o débito do ventrículo direito. Além disso, o ECG também está orientando que a artéria culpada é a coronária direita e essa informação vai nortear a abordagem da equipe da hemodinâmica durante o procedimento de angioplastia primária, ainda que o paciente tenha outras lesões críticas observadas à angiografia.

Caso a opção para o atendimento desse paciente fosse trombólise, o ECG também seria um dos critérios importantes para acompanharmos de forma seriada, pois a diminuição progressiva do supra de ST seria um importante indicativo de que o tratamento instituído está dando certo.

E será que temos outras aplicações do ECG como ferramenta para acompanhamento clínico? Sem dúvidas. O simples fato de monitorizarmos o paciente PS nos permite acompanhar a evolução e tratamento de arritmias cardíacas. É o que acontece quando paciente foi medicado para tratar uma fibrilação atrial aguda e fica em observação para avaliarmos a reversão para ritmo sinusal.

Também é possível obter informações importantes sobre o tratamento de doenças crônicas, como a hipertensão arterial, por meio do ECG. Se você recebe um paciente de longa data com este diagnóstico, referindo que faz acompanhamento clínico e uso de medicações hipertensivas, mas que apresenta um ECG com estigmas de hipertensão arterial sistêmica mal controlada, é possível fazermos no ato o diagnóstico de lesão de órgão alvo e de falha (de adesão?) terapêutica.

Outro caso importante é o acompanhamento de pacientes em uso de marca-passo. O ECG de repouso acaba sendo um bom parâmetro para entender se há sinais de falha no dispositivo e pode ser o primeiro passo na avaliação que, invariavelmente, vai terminar na solicitação de um Holter de 24h.

Enfim, são muitas as informações e os detalhes que podem ser obtidos por meio da avaliação do ECG do paciente que vão te ajudar nos próximos passos do tratamento do seu paciente.

 

E agora, será que dá pra avaliar qualquer ECG?

 

Chegamos ao final dessa jornada sobre como extrair o máximo de informações sobre o ECG do nosso paciente.

Eu gostaria de lembrar que ela começa lá no primeiro conteúdo discutido, que apresentou de forma sistemática a padronização do ECG e como deve ser feita a análise sequencial do traçado.

Nós passamos ainda pelo treinamento sobre como avaliar a frequência cardíaca do paciente de quatro diferentes formas, todas elas com seu uso específico, e que vão te ajudar a avaliar esse parâmetro em qualquer ECG.

Também vimos as condições específicas de análise do ECG em crianças e como a divisão em grupos de faixa etária – que por vezes leva em consideração a diferença de dias -, influencia na interpretação, na medida em que os parâmetros podem apresentar valores tão divergentes que ainda são considerados dentro da normalidade.

E por fim, apresentamos um acrônimo que vai ser o seu mnemônico nessa fase inicial de treinamento e que vai te permitir avaliar os aspectos mais pertinentes de cada ECG sem deixar passar nada.

Após entender como fazer a descrição correta do ECG, interpretação contextualizada dos achados e utilização desses parâmetros para te auxiliar no plano diagnóstico terapêutico do seu paciente, eu tenho certeza de que você terá dado os importantes passos iniciais para dominar a arte de usar o ECG da melhor forma durante sua prática clínica.

Agora é hora de praticar. Leve esse conteúdo com você para consultas e pesquisas sempre que possível e não se esqueça de que você pode nos consultar a qualquer momento pelo nosso site ou perfil do instagram para dúvidas e até sugestões.

Eu espero que esse conteúdo tenha feito sentido para você e que te ajude na rotina.

 

2 respostas

    1. Olá, Marcílio.
      A rotina de análise segue as premissas que explicamos aqui no artigo a partir do acrônimo apresentado. E passa sim pela avaliação da frequência cardíaca e os outros elementos descritos.
      Qualquer dúvida estamos a disposição.

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